Márcia Conrado - Prefeita de Serra Talhada (PE) e presidente da Comissão de Prefeitas da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP)Priscila Gambale - Prefeita de Ferraz de Vasconcelos (SP) e vice-presidente de Primeira Infância e Alfabetização da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP)Adriane Lopes - Prefeita de Campo Grande (MS) e 3° vice-presidente nacional da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP)A violência política de gênero nem sempre é silenciosa. É, cada vez mais escancarada, dita ao microfone, estampada em manchetes e registrada em vídeos que viralizam e se repetem em ciclos de indignação e esquecimento.
Quem está dentro sabe: esse tipo de violência não começa na hora da fala atravessada ou do ataque explícito. Ela é mais profunda e está no modo como o poder foi historicamente construído para excluir mulheres - especialmente mulheres negras, indígenas e periféricas.
Ser mulher na política é um exercício de resistência. Somos prefeitas ocupando um espaço que historicamente nos foi negado: o da política. Sabemos na prática que a violência política de gênero não começa no ataque, mas muito antes. Começa quando enfrentamos o machismo com julgamentos, as tentativas constantes de deslegitimar as nossas decisões e até mesmo nossos corpos ou as roupas que vestimos, quando somos questionadas sobre nossa competência e segue depois nos bastidores onde decisões são tomadas sem nos chamarem, nos espaços onde nossa presença ainda é tratada como concessão e não como direito.
Desde 2021, a Lei 14.192 reconhece a violência política de gênero como crime. Define que qualquer ação que busque restringir ou impedir direitos políticos de mulheres deve ser punida. O Código Eleitoral passou a tipificar como crime assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar uma mulher eleita ou candidata por sua condição de gênero, raça ou etnia. A pena vai de 1 a 4 anos de reclusão mais multa.
Mas como o Brasil trata essa lei? Entre 2021 e 2023, o Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero do Ministério Público Federal monitorou 175 casos. Apenas 12 viraram ação penal eleitoral, segundo dados do Monitor de Violência Política de Gênero e Raça do Instituto Alziras. A violência, portanto, acontece e depois é ignorada.
Prefeitas denunciam ataques que tentam calar mulheres e exigem uma democracia com igualdade de gênero. Zeca Ribeiro/FNP
A violência se aprofunda nas redes sociais, onde algoritmos ganham com o discurso de ódio. Se você é uma mulher negra ou de origem periférica e ousa divergir, os ataques serão multiplicados. Porque não basta ser mulher. Muitas vezes é preciso se encaixar nos moldes do que o sistema considera "aceitável".
No meio de tudo isso, há o peso invisível, mas real, do cuidado. Enquanto exercemos mandatos, seguimos sendo mães, filhas, cuidadoras, profissionais. O tempo que nos falta não é falta de organização, mas sim fruto de uma estrutura que ainda naturaliza o acúmulo de funções como papel da mulher.
Apesar disso, seguimos em movimento e não estamos sozinhas. Na Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP), consolidamos coletivamente a Comissão de Prefeitas, um espaço de articulação política e institucional para enfrentar atos de violência com estratégia e força conjunta. Estamos também articulando o Fórum Gestoras Municipais para Políticas de Gênero, porque o enfrentamento institucional precisa virar política pública.
Nossa presença não é simbólica. É estratégica e necessária. Não estamos aqui apenas para resistir. Vamos governar e transformar. E não aceitamos que a democracia siga tolerando práticas misóginas.
Estar na política, é muito mais que ocupar um cargo, é representar vozes que por muito tempo foram silenciadas. É garantir que mães, trabalhadoras, jovens e idosas vejam suas realidades refletidas nas políticas públicas.
A nossa presença transforma prioridades. Quando uma mulher governa, ela pensa em saúde, em educação, em assistência social, em segurança com olhar humano.
É por isso que a nossa participação é urgente, porque democracia de verdade só existe quando há diversidade. E política de verdade só existe quando há igualdade.
A violência política de gênero existe. Tem nome, tem lei, tem vítima - e tem sistema que a protege. Mas também tem quem lute contra ela. E nós estamos aqui. De cabeça erguida, com mandato na mão e com a certeza de que, enquanto uma for atacada, todas seremos.Artigo originalmente publicado no site Congresso em Foco.
Margarida Salomão, Prefeita de Juiz de Fora e secretária-geral da FNPRodrigo Neves, Prefeito de Niterói e vice-presidente de Relações Internacionais da FNP
No Brasil e no mundo, temos assistido ao crescimento na oferta de políticas públicas e no protagonismo das cidades na formulação e pactuação com governos regionais e centrais. Autoridades locais reivindicam a construção e o aprimoramento de ambientes institucionalizados de permanente diálogo entre os diferentes níveis de governo, com o objetivo de definir responsabilidades, acompanhar a execução de políticas e, evidentemente, garantir seu financiamento adequado.
Mas como assegurar um diálogo institucional eficaz se as cidades são tão numerosas e diversas — seja do ponto de vista populacional, econômico, geográfico e cultural? E como tomar frequentes decisões que envolvem milhares de autoridades locais? É justamente por isso que o papel das associações e redes de municípios — regionais, nacionais e até globais — se torna cada vez mais estratégico e amplamente reconhecido.
Cidades grandes, médias e pequenas têm demandas diferentes — e isso se reflete diretamente em como elas se articulam politicamente. Enquanto municípios menores costumam se associar com base no princípio de "um município, um voto", cidades mais populosas tendem a buscar redes que considerem seu peso demográfico, econômico e político. A lógica é compreensível: um prefeito de uma megalópole dificilmente participará de uma assembleia onde sua cidade tem o mesmo peso que um município com poucos habitantes.
Não é um problema de vaidade, mas de coerência com a complexidade da gestão pública. As metrópoles concentram a maior parte da população, do Produto Interno Bruto (PIB) e dos desafios sociais do país. Ainda assim, isso não diminui a importância dos pequenos municípios, que também enfrentam suas legítimas urgências.
No Brasil, essa diferença levou à formação de duas grandes associações de representação municipal: a Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP), que representa as cidades com mais de 80 mil habitantes — onde vivem dois terços da população brasileira e se produz cerca de 75% do PIB nacional —, e a Confederação Nacional de Municípios (CNM), com forte presença dos municípios menores.
Esse arranjo não é exclusividade brasileira. Nos Estados Unidos, a National League of Cities (NLC), fundada em 1924, engloba vilas, vilarejos e pequenas cidades, mas conta também com filiação formal de grandes cidades. Já a United States Conference of Mayors (USCM), quase centenária, é a associação focada nas cidades com mais de 30 mil habitantes, com forte influência na definição de políticas públicas nacionais.
Na Alemanha, a Associação Alemã de Cidades e Municípios reúne as 11 mil pequenas e médias cidades do país, enquanto a Associação de Cidades Alemãs conecta as 200 maiores. Berlim, por exemplo, está associada às duas redes, mas atua efetivamente na segunda.
No México, a Conferência Nacional de Municípios agrega associações regionais e um maior número de cidades, e a Associação de Cidades Capitais reúne as capitais regionais. Na Austrália, situação semelhante: a Australian Local Government Association (ALGA) representa todos os governos locais e a Council of Capital City Lord Mayors (CCCLM), os líderes das capitais e de cidades como Sydney e Melbourne.
Mesmo em países não federados, como Holanda e França, os arranjos são parecidos. A Associação de Municípios Holandeses (VNG) representa as 358 cidades do país, mas isso não impede a coexistência harmônica com o Grupo das 4 (G4), formado pelas cidades acima de 200 mil habitantes: Amsterdã, Roterdã, Haia e Utrecht. Na França, que possui mais de 30 mil municípios, a Association des Maires de France (AMF) reúne cidades de todos os portes, enquanto a France Urbaine congrega Paris e as principais cidades francesas.
A coexistência de associações distintas, que refletem e organizam as vozes da diversidade dos territórios, potencializa e fortalece a capacidade de representação de prefeitas e prefeitos. É um sinal de maturidade democrática, pois o modelo policêntrico afasta quaisquer pretensões hegemônicas. A complementaridade dos arranjos políticos democratiza a representação, amplia o alcance político das pautas urbanas e evita a centralização excessiva, além de conferir ainda mais legitimidade à atuação institucional assertiva e suprapartidária, viabilizando uma atuação harmônica, cooperativa e complementar.
Artigo publicado originalmente no jornal Correio Braziliense.
Cícero Lucena | Prefeito de João Pessoa e vice-presidente de Relações com o Congresso Nacional da FNP
Imaginem a cena: seu time está em campo, perdendo de goleada. O técnico orienta, gesticula, mas os jogadores ignoram as instruções, jogam por conta própria ou simplesmente seguem alheios ao comando. À beira do campo, o treinador assiste, impotente, e você se desespera.
Pois esse será o cenário das cidades no Conselho Superior do Comitê Gestor do IBS caso não haja uma revisão do PLP 108/2024. Sem simetria, os prefeitos terão que lidar com “jogadores” que poderão não atender a determinação do técnico. E a derrota, iminente.
Esse “detalhe”, longe de ser trivial, está escondido nos artigos que tratam da composição do Conselho, o “coração” do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/2024. Embora à primeira vista pareça apenas mais um texto técnico — um artigo aqui, um parágrafo ali —, quando analisado com atenção, especialmente o Capítulo III, Seção II, fica evidente que estamos diante de uma proposta que compromete a lógica de participação federativa na formulação e execução de uma política pública fundamental — a da reforma tributária.
Não se trata de exagero. O desenho atual do PLP enfraquece a representação municipal justamente no espaço onde serão tomadas decisões estratégicas sobre a gestão do IBS, imposto que unificará o ISS e o ICMS, tributos sobre o consumo, e afetará diretamente a arrecadação e os serviços prestados à população.
Para os Estados, a regra é clara: o governador será automaticamente representado por seu secretário de Fazenda ou Finanças. Ocupou o cargo, garantiu uma das 27 cadeiras destinadas aos estados no Conselho. E quando esse “jogador” for mal no jogo, o governador pode, a qualquer momento, substituir seu representante — afinal, o cargo fala por si. É uma representação institucional, legítima e funcional.
Com os municípios, o jogo muda de figura e acentua o desequilíbrio. O prefeito ou prefeita deve indicar uma pessoa física, o que se convencionou chamar de indicação por CPF. Esse “jogador” pode até ser um secretário municipal de Fazenda ou Finanças, mas não necessariamente. Basta preencher alguns critérios técnicos: ter dez anos de experiência na administração tributária municipal, quatro anos em cargos de direção, chefia ou assessoramento superior nessa mesma área e formação superiores compatível com a função. O prefeito pode destituí-lo, mas não nomear outro em seu lugar. Pior, assume o suplente de outra cidade. Ou seja, uma vez eleito, o representante torna-se, na prática, um titular fixo, com mandato, mesmo que o cenário político, técnico ou institucional do município mude. Em outros termos, o técnico pode pedir para o jogador sair, mas não pode substituí-lo.
Trata-se de um modelo que rompe com o princípio básico da representação: a fidelidade à vontade do ente federado que se pretende representar. Que tipo de representação é essa em que o titular pode, legitimamente, se afastar das diretrizes, das demandas e até dos interesses do município sem que haja qualquer possibilidade de substituição?
A mesa de negociação fica desequilibrada tendo de um lado secretários de estado, que além de conhecimento técnico, têm respaldo político para falar em nome dos governadores, e do outro, representantes municipais que, mesmo que com robustos currículos técnicos, podem divergir do posicionamento do município, pois têm mandatos, nem agregar o papel de interlocutor do prefeito.
A assimetria é evidente — e juridicamente questionável pois fere o princípio constitucional da isonomia. Enquanto estados operam com um modelo automático, estável e funcional, os municípios são submetidos a uma lógica engessada, que desconsidera o princípio da autonomia municipal. Pior: ignora a própria dinâmica da política local, onde alternâncias de poder, reorganizações administrativas e redefinições de prioridades são parte do jogo democrático.
Resta a pergunta: qual a lógica dessa diferença entre estados e municípios? Se o objetivo é garantir estabilidade e qualificação técnica, por que os mesmos critérios não são exigidos dos representantes estaduais? Se a justificativa é institucional, por que o modelo dos estados reconhece a autoridade do cargo e o dos municípios se ancora em pessoas físicas com mandatos?
Se o argumento for institucional, ele também não se sustenta. Afinal, no caso dos estados, a cadeira no Conselho pertence ao cargo — e não à pessoa. É o secretário de Fazenda ou Finanças, uma autoridade nomeada diretamente pelo governador quem ocupa o assento, com possibilidade de substituição sempre que necessário. Já os municípios são obrigados a delegar sua representação a uma pessoa física específica, que permanecerá ali por quatro anos, independentemente de mudanças no governo municipal.
A dualidade de critérios compromete a coerência do modelo, gera insegurança jurídica, fere o pacto federativo e, sobretudo, cria um desequilíbrio na capacidade de influência entre os entes federados — num Conselho que deveria refletir de forma equânime os interesses de estados e municípios.
Não faz sentido, uma vez que o espírito da reforma tributária é o da cooperação federativa. No entanto, a composição do Conselho vai na contramão e coloca os municípios em desvantagem. Se queremos, de fato, um sistema mais justo é preciso garantir que todos os entes tenham voz de forma equilibrada. Porque no Brasil real, onde as cidades são a linha de frente da entrega de serviços públicos, não se pode tratá-las como coadjuvantes.Artigo publicado originalmente no Portal da Reforma Tributária